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ANDRÉ LUIS SOARES
( BRASIL – DISTRITO FEDERAL )

 

André Luis Soares  nasceu em Brasília, mas mora em Guarapari desde 2005 e, através de seus poemas e poesias, já conquistou diversos prêmios literários. Sua obra soma mais de dois mil textos registrados na Fundação Biblioteca Nacional/EAD (RJ).

 

CONTOS E POEMAS: ANTOLOGIA 2017 / organização Ulysses Rocha Filho, Maria José dos   Santos.  Jundiaí, SP: Paco, 2022.  88p.  21 cm.  ISBN 978-85-S462-2181-3 

 

Ritual em preto e branco

Todos os dia
— em sagrada rotina —
sempre ao final da tarde,
quando os esmeros com a saúde precária
lhe concedem algum descanso,
ela se recolhe em seu pequeno quarto,
longe de todos os olhares
e, com excessivo zelo,
pega o antigo álbum de fotografias
[guardado, entre os cetins,
na última gaveta da velha cômoda.]

Lenta e aleatoriamente
ela abre em qualquer página
deliciando-se com a imagem;
bastando que veja uma foto a cada dia
para que se exponha
a um turbilhão de detalhadas lembranças.
Admirada, ela não entende
como pode, um único papel,
corroído e amarelado,
revelado ainda em preto e branco,
conter em si tanta memória.

Os lábios se curvam em leve sorriso,
enquanto ela imagina sentir
as nuances específicas
de cada instante registrado,
resgatando tudo aquilo que fora dito,
tudo o que fora feito...
cada gargalhada,
cada olhar em flerte,
cada essência da cozinha e do jardim,
cada emoção antes perdida no tempo,
como se o melhor da vida,
—cristalizado pela magia luminosa do
flash —
escapasse ao limite retangular da rude gramatura
para se expandir surreal, transbordando saudades.


Tomada porá furtiva ingenuidade,
ela ignora a ausência de outras cores,
acreditando que a monotonia dos tons em âmbar
seja fruto apenas de seus sonhos,
já cansados e turvos.

Vem, então, com vontade desenfreada
de adentrar o fosco do papel,
aprisionando-se para sempre
nos vívidos coloridos de outrora.
Dessa retro viagem visual
nenhuma minúcia lhe escapa.
Ávida, recorda-se de todos os nomes;
da textura exata dos vestidos e dos sapatos;
dos motivos se dos sabores
comuns àqueles cenários tão longínquos
[tudo levando a crer que a vida inteira fosse um
click
entre o abrir-se e o fechar-se das lentes divinas.]

Ao centro da foto sorteada ao acaso
seus pais se destacavam
tão jovens, tão lindos...
Bastou semicerrar as pálpebras
e um suave perfume de lavanda em roupa limpa
impregnou o ar.

Talvez por autoproteção
ela jamais se lembra das tristezas.
Até porque, quase como regra,
os álbuns de fotografias
possuem aa generosa dádiva
de preservar somente os átimos de felicidade,
na forma de doces fragmentos
que se elevam além do tempo
[porém, não imunes às traças].

De súbito...
ao retomar ciência da terrível volúpia
dos insetos devoradores de papel,
sua face quase traduz desespero.

Ela fecha o velho livro com ternura e
—tentando não fazer barulho, apesar das mãos trêmulas
após acariciar a capa,
embala-o novamente entre cetins,
acomodando-o outra vez
na última gaveta da velha cômoda,
com o cuidado próprio
de quem protege um tesouro.

E, tal se repete todos os dias,
a última fotografia apreciada
se converte em melodia
a embalar seu sono...
minutos antes de se apagarem
as luzes do asilo
onde, há anos, ninguém a visita.

 

*

 

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Página publicada em setembro de 2023



 

 

 
 
 
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